Mais de um ano depois...
Como estou de volta aos contos, vamos à exposição deles!
Este foi o que mais me deu trabalho e prazer.
PONCHO DE LA
PACHAMAMA
‘contra mim bate a esperta difusão
do tempo, a extensa confusão do
olhar, a vibrante galeria da
cor: o espaço. durante uma
pequena e qualquer loucura, não
me componho.
se não somos mudos, ficarei
surdo. nestas rochas onde o
sol se desleixa e persegue as
águias que escondem ninhos
secos.
e é quando tento agarrar
o sol que reparo ter
as mãos convexas’ ¹
Com uma inspiração profunda e um suspiro, Pablo, defronte da
placa indicativa de sua villa nativa, exclama:
- Enfim, voltei!
Foram 15 anos metidos em sandices e todo tipo de revezes,
que culminaram neste regresso inusitado. Se Pablo soubesse, de antemão, a que
conseqüências suas escolhas levariam, jamais teria saído de Purmamarca. Uma
cidadezinha ao pé da Serra das Sete Cores, Argentina.
“Ah... Pachamama²... Guardastes minha Estrella, sob tua
proteção por todos estes anos?’
Pablo, incitou o cavalo e pôs-se a descer pela estradinha
das mulas, único acesso à villa.
Caminhos de seus ancestrais Incas, as colinas e serras do noroeste
da Argentina estavam povoadas por pequenas aldeias, de casas baixas de
alvenaria. Especialmente Purmamarca, nasceu sob o Poncho de la Pachamama, como Pablo
chamava a sua serra colorida. A montanha lhe lembrava um poncho a agasalhar seu
povo, sempre tão necessitado de proteção.
La Pensión,
o albergue da aldeia recebia os viajantes que vinham pela estradinha das mulas.
Comerciantes e criadores, pernoitavam ali, refugiando-se do frio e do vento
gelado. Vagabundos e andarilhos também por ali paravam, recebendo acolhida de
D. Concepción, dona da pensão e de um imenso coração.
Viúva, mãe de duas filhas, conseguira consolidar a família,
mantendo sua filha mais velha, Violeta, casada e com filhos, sob o mesmo teto,
todos auxiliando no funcionamento do estabelecimento. Estrella, a filha mais
nova, também permaneceu por ali, alegrando as noites de Purmamarca com sua
cantoria nas noites festivas em
La Pensión.
O céu estrelado e o clima ameno trouxeram Estrella a
dedilhar seu violão do lado de fora do albergue. Zilito, o bêbado forasteiro
adotado pela villa como se fora morador local, aproximou-se e sentou a um canto
ao lado da porta:
- Señorita, fico aqui, de longe, pra ouvir suas cantigas...
Assim não sentes o bafo de aguardente.
A moça seguiu cantarolando baixinho e sorrindo para o amigo.
Estrella gostava demais da companhia dele... Era um homem simples e simpático
com quem ela conversava confiantemente, posto que no dia seguinte, ele nada
lembrava da conversa. Sempre borracho, o pobre homem chegou à villa como um
andarilho, nunca disse de onde veio nem que tristezas carregava consigo.
- Esta canção é tão triste, señorita... Falas de algum amor
perdido?
- Estás cansado de ouvir minha história triste, Zilito.
- Jamais contou-me coisa alguma, señorita! – E Zilito
gargalhou como somente os bêbados conseguem. Até perder o fôlego.
A amiga desconfiou, por alguns segundos, de sua amnésia
alcoólica, mas logo sucumbiu à vontade de falar-lhe das coisas do coração...
- Todas as noites rezo a Mama Quilla³ para que oriente os
caminhos de Pablo...
Já recomposto da risada, o borracho pergunta:
- Quem é Pablo? Nunca vi aqui na villa...
- Ele foi embora há 15 anos. Recebeu uma proposta de um
desconhecido, para trabalhar sabe-se lá no quê, não sei onde. Eu sabia, mas fiz
questão de esquecer. Não gostei do sujeito e não confiei nele. Mas Pablo ficou
encantado com as histórias e promessas. Hipnotizado, eu acho... Era muito
jovem. Não prometeu voltar, mas eu o espero. Eu sei que ele volta. Sua serra colorida está aqui, ele vai querer
voltar pra ela.
- Não é pra señorita que ele vai voltar?
- Também. No coração dele, eu e a sua terra somos a mesma
coisa.
- Não entendo, señorita...
- Deixe assim, meu amigo... Deixe assim.
D. Concepción apareceu à janela:
-Vocês dois aí... Vamos entrar para dormir.
Ao fechar as portas, a boa senhora pergunta-se:
“Que destino terá minha filha, tão sonhadora e amiga de
vagabundos?”
Suspira e apaga as luzes do albergue.
Pablo chegou próximo a Purmamarca naquela mesma noite, mas
decidiu acampar antes de entrar na aldeia. Pensou ter ouvido a voz de Estrella
cantando baixinho e dormiu sob o luar embalado pelo mais doce acalanto.
Ao amanhecer abateu-lhe o mais profundo acanhamento por
voltar assim, de repente, tanto tempo depois. Como o receberiam?
Andou, de longe, em torno da
villa observando a movimentação. Parecia que algumas pessoas se preparavam para
um ritual...
“A oferenda a Pachamama! É hoje! Como eu pude esquecer?”
Depois que um bom número de pessoas seguiu em direção à
montanha, Pablo dirigiu-se ao albergue.
- Buenos dias, amigo!
- Bem-vindo! Em que posso servi-lo?
- Um café forte, por favor.
Ao servir o viajante, Martin, genro de D. Concepción,
pergunta:
- Vens de longe? Aparentas cansaço, amigo...
- Viajei muito, mas venho daqui mesmo. Não me reconheces,
Martin?
E quando o homem abre um sorriso largo, ainda que temeroso,
o amigo exclama:
- Pablo? Não pode ser! Não poderia te reconhecer... Estás
muito diferente! Que aparência é esta, meu amigo?
E abre os braços para estreitar o amigo entre eles.
- Deixa só a Estrella te ver! Que felicidade!
- Onde ela está?
- Está na Corpachada º, é claro!
- Melhor assim, minha filha não pode te ver neste estado!
Parece um bandido, um vagabundo da pior espécie! – Disse, enfática, D.
Concepción, enquanto dava-se a avistar ao recém-chegado.
- Mamá! – Pablo intenta abraçá-la. mas a senhora permanece
imóvel.
- Não sou sua Mamá! Então tu vais embora e reapareces com
esta cara de cão maltratado?
- Eu quero contar por tudo o que passei, Mamá Concepción...
- Isto tu tens que contar pra Estrella... Agora precisas
tomar um banho e melhorar essa aparência. Violeta, prepara uma refeição
fortalecida pra este morto de fome aqui.
- Estrella me esperou por todos estes anos?
- Mas, se ela não fez outra coisa!
Pablo tentou sorrir, mas o fato era sério demais para
felicidades e sorrisos.
De banho tomado e barba feita, o homem conseguiu relaxar e
esquecer do motivo de ter voltado, partilhando a expectativa dos amigos em ver
a surpresa que Estrella, sua Estrella, teria ao vê-lo.
Mandaram que ele fosse até o Algarrobo, a árvore centenária
que simbolizava e presenciava todos os grandes eventos de Purmamarca, e
esperasse que Estrella fosse encontrá-lo lá.
O peito de Pablo se apertou com uma lembrança terrível, mas
ele não podia pensar nisso agora.
“Ai, que meu coração bem sabe o que se passa... Os rostos de
minha família, denunciaram tudo... Será possível?’
A moça pensava a caminho do Algarrobo.
E, sim, lá estava Pablo com seu inconfundível sorriso
aberto, ele voltou! E num abraço significativo, os namorados confirmaram, que,
enfim, estavam juntos novamente.
- Que barbaridade eu fui fazer, meu amor! Serás capaz de me
perdoar?
- Não há nada a perdoar, que idéia extravagante! – E
Estrella fez com que ele mirasse a montanha colorida. – Eu sou como o Poncho de
la Pachamama,
sempre estive aqui para te envolver com meu amor.
- Nem sei por onde começar a te explicar porque parti...
- Disso eu sei bem, queria saber o que lhe aconteceu...
Pareces tão castigado e sofrido, meu bem...
De repente, Pablo sentiu um peso enorme no coração e no
corpo todo.
- Para contar tudo eu precisaria de muito tempo.
- É melhor mesmo me contares tudo em outra hora, outro dia,
num outro momento!
Estrella percebeu a tristeza dele e quis reanimá-lo:
- Diga apenas que voltou para sempre...
- Ah... Isso certamente...
- Então te encontrei,
hein, Pablo?
O homem truculento, de
sorriso vitorioso nos lábios, acertou uma direita certeira no rosto do
ex-amigo.
- Pensou, realmente,
que iria fugir de mim por toda a vida?
Pablo não reagiu, num
bar lotado, com mulheres e idosos, achou melhor colocar em prática o que
planejou para aquele momento:
- Buenas, Gregório,
temos contas a acertar.
- Temos contas? – O
homem agarrou o outro pela gola da camisa. – Eu tenho uma conta a cobrar de ti,
seu bastardo!
Pablo fez um gesto
pedindo paz...
- Vamos resolver isto
de forma civilizada? Temos aqui muitas testemunhas, eu quero propor um duelo.
Com pistolas, hora marcada e a solução definitiva para nossa briga.
Gregório soltou o
imprudente dando uma gargalhada:
- Queres apenas adiar
o dia de tua morte!
- Que seja... Daqui a
três dias em Purmamarca, ao amanhecer.
Estrella e Pablo passaram a tarde juntos, foram ao local do
ritual a Pachamama e rezaram a ela por motivos diferentes. Ele visitou seus lugares
preferidos e cobertos de lembranças, soube notícias dos parentes, quase ninguém
restava ali na villa, que faleceram ou mudaram para outras cidades.
À noite, puderam, enfim, viver o seu amor da forma mais
íntima sob o luar abençoado de Mama Quilla... Depois, Estrella ficou
cantarolando baixinho no ouvido de Pablo, até que ele dormisse com a sensação
de estar acolhido no ventre de uma grande mãe.
O dia amanheceu de forma calma e brilhante em Purmamarca. Parecia,
inclusive, que os raios de sol estavam especialmente alegres, mas...
Dois tiros foram ouvidos. Estrella abriu os olhos,
sobressaltada. Esperou ouvir mais alguma coisa, mas o silêncio era aterrador.
Percebeu que Pablo não estava na cama. Sentiu-se desfalecer. Fechou os olhos e
viu a imagem dele morto no chão.
Pablo caiu de costas, com o tiro certeiro de Gregório na
altura de seu estômago. O seu tiro? Não sabe que direção tomou... Ele nunca
fora bom com armas...
Ali, à meia-sombra do Algarrobo, Pablo olhou para a serra
colorida. Sua visão estava turva, mas ele viu o Poncho de la Pachamama vir sobre ele,
a encobri-lo num aconchego final.
Estrella correu em direção à árvore centenária, mas ainda
longe, viu Zilito aos pés do morto, rezando e encomendando aquela alma. De
certa forma, sentiu como se ela mesma estivesse a velar Pablo. Deu meia-volta e
trancou-se no quarto. Jogou-se na cama onde o cheiro e a presença dele ainda
eram marcantes. Chorou todo o dia. E quando a noite chegou, a energia de sua
Mamá Quilla lhe deu forças para erguer-se. Só então viu uma carta em cima de
sua penteadeira.
Era de Pablo.
A moça percebeu que ele contava ali, naquelas linhas
apressadas, o que viveu fora de Purmamarca. Estrella foi passando os olhos ligeiramente
pela carta, mas, enevoados, não ajudavam na leitura. Ela esforçou-se em ler as
últimas linhas com atenção: “Eu tinha certeza, minha Estrella, que a
encontraria casada, com filhos, de todo esquecida de mim. Isso teria me ajudado
a aceitar a morte, pois que eu sentiria uma dor egoísta, digna do final que
terei. Mas reencontrá-la a minha espera, além de não merecer tamanho amor, me
conduz, neste momento, a mais profunda dor, a dor de fazer-te sofrer. Peço que
Pachamama cuide de ti, para sempre. Com amor, Pablo.”
Dez dias depois da morte de Pablo, Estrella estava pronta
para partir. Não iria para longe. No alto da Serra de Sete Cores, seus pais
criavam cabras quando ela era criança e era para lá que a moça decidiu voltar.
Sua mulinha estava carregada, dois sobrinhos iriam com ela
para ajudá-la a instalar-se na casa de sua infância.
- Tem certeza, minha filha, que é isso que queres fazer?
- Minha mãe... Todo o tempo que vivi aqui foi à espera de
Pablo. Agora não há mais o que esperar... Ficarei perto dele, lá na montanha.
Estarei bem, acredite, Mamasita.
- Eu sei que estará, minha querida!
Estrella, com o violão amarrado às costas, incitou seu
cavalo num trote lento e partiu. A família lhe dizia ainda palavras de
despedida, saudade e as últimas recomendações, cuidados de quem se ama.
Logo atrás, Zilito, montado em uma mula, seguia a moça e os
meninos. D. Concepción lhe pergunta, fingindo-se surpresa:
- Onde vais, homem?
- Viver na montanha. Alguém precisa escutar as cantigas
lindas dessa moça, não é mesmo?
E, piscando marotamente para a viúva, gargalhou como somente
os bêbados conseguem...
Anorkinda
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¹ - poema de vitor hugo mãe
² - Pachamama é a grande divindade da Cordilheira dos Andes
da América do Sul. Representa a Terra em sua totalidade.
³ - Mama Quilla, divindade feminina. Os incas acreditavam
que ela reinava sobre todas as estrelas, que estavam todas a seu serviço.
° - Corpachada, este é um dos ritos consagrados à Pachamama.
Para tanto, cava-se profundas covas, onde se enterram todo o
tipo de comida e bebida. Este ritual é acompanhado de rezas e invocações à
deusa.
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